segunda-feira, 19 de março de 2012

“BEM-VINDO AO CLUBE” – A última jornada.
Novela de Geraldo J. Costa Jr.





Para  Adriana L. 

“Aquele que perseverar até o fim será salvo”.




Pertenço à raça mais maldita, mentirosa e desprezível da humanidade: a dos escritores. Há dois anos enquanto descia ao calabouço da indiferença onde se recolhem os réprobos que desacreditam da vida e de tudo o que a ela diz respeito cruzei com alguém que, depois compreendi faria mudanças profundas em meu espírito. Porque me fez continuar a escrever quando eu já não tinha nenhum motivo para fazê-lo; disse-me coisas que meus irmãos e amigos jamais disseram; coisas que não custa dizer, mas que faz tão bem ouvi-las. Eu lhe dediquei de todo meu coração a minha última jornada. Porque ela me ensinou como seguir este caminho com os olhos embaçados pelas lágrimas não de dor, mas de revolta. A força que tem me sustentado sobre o cavalo e que outrora me fez cortar cabeças, rasgar o peito e perfurar a garganta de todos os demônios que cruzaram meu caminho, tempo em que em nome do Maior eu vestia um manto branco pintado com uma cruz vermelha, e lia e escrevia poemas e prosas, na madrugada, em abrigos e ao relento, enquanto os companheiros daquela jornada descansavam; quando podiam.
Ela, a pessoa que me fez me aceitar como sou, e me proporcionou o gozo do amor em toda a sua plenitude, mesmo distante de meus olhos e longe de minhas mãos. Embora eu a sentisse comigo muitas vezes durante o dia, e acordasse bem cedo à primeira luz da manhã, certo de que eu estivera com ela à noite toda. O que confirma a tese repudiada pelos tolos e aceita pelos de bom coração que, ao amor basta os sentimentos. Acho que o relógio de minha vida vai até o 46, quando, devo confessar, eu imaginava que ele não chegaria até 22. Resta-me ainda terminar uma confissão. Uma que não escrevo com papel e lápis. As últimas linhas vão saindo à custa de muito esforço, arrependimento, culpa e remorso, dor e lágrimas. E mesmo concluída, ficará faltando algumas linhas, páginas, de amor e felicidade, que não pude escrever desta vez, embora eu as tenha desejado tanto.
Um ateu convicto tornar-se um cristão, já é um caminho difícil e longo a percorrer. Compreender que nada termina e nem começa aqui é um avanço tremendo. Portanto, aceito sem revolta o fato de não ter vivido desta vez a felicidade, na sua forma mais bonita, doce e verdadeira. Porque quando a conheci, ela estava longe de mim. Talvez um dia esteja perto. Eu espero.

Por isso, senhores, era preciso torturar a mente, expô-la a mais desgraçada dificuldade para que assim o pensamento pudesse expandir-se. Acreditávamos nisso. E nos dedicávamos a isso. Começamos por ouvir rockn’roll em alto e bom som; o mais alto possível, enquanto escrevíamos; ou tentávamos escrever.
Era tudo uma questão de hábito, e, como tantas outras coisas, de mais ou de menos importância, nós acreditávamos piamente nisso.
Depois, convictos, nos submetemos à fome. E com o passar dos dias, à sede. Contanto, que escrevêssemos. Ou tentássemos. Porque nós acreditávamos que, nos submetendo a todo tipo de privações, adquiriríamos a tão necessária disciplina.
Mas não era o bastante.
Então, descobrimos que precisávamos vencer o medo. E a melhor maneira, logo percebemos, era sujeitar-se a ele.
Por esse motivo, feito Natanael, começamos a roubar livros do centenário Gabinete de Leitura. Todos quantos podíamos. Contanto, que isso nos levasse a escrever. Mas pra ser um bom escritor é preciso entregar-se à ousadia, e deixar-se levar por ela. Por esse caminho que nunca se sabe aonde vai dar. Como quem escreve a primeira linha sem jamais saber se haverá a próxima.
Então, à tarde de domingo foi se despedindo daquele jeito goiano, e bastou esticar os pés sobre a mesa, cruzar as pernas – bem esticadas – e deixar a cadeira inclinar-se para trás até que os olhos vermelhos e cansados encontrassem o vitrô basculante da porta do quarto maldito, pintado de rosa, onde se ouvia as primeiras notas de “By my side”. E bem podia ser que naquele instante a vida se tornasse prazerosa. Mas só naquele instante. Contanto que escrevêssemos olhando para o retrato de Viviane apoiado no monitor do velho e virulento PC. E antes que a música terminasse, e sem deixar de escrever, pegássemos o folheto onde se lia que “aquele que perseverar até o fim será salvo”. E faríamos tudo isto de novo, e mil vezes mais se necessário fosse, sem deixarmos de escrever, de apoiar os pés sobre a mesa, e as pernas esticadas e cruzadas, por um instante, apenas um, e olhássemos em redor e víssemos que a vida é mesmo maravilhosa quando se tem dinheiro no bolso, e que haverá sempre um idiota desocupado o bastante para ler as linhas escritas por nós com a dor, a esperança e o ressentimento que só os puros, os bem intencionados e honestos conhece. Então haveremos de nos sentir realmente como dois, três, quatro idiotas, muitos idiotas além de nós, tanto quanto àqueles, porque feito Boris, tudo nos faria mais sentido quando o desafio fosse apenas uma folha em branco, meia dúzia de lápis e uma máquina de escrever abandonada sobre a mesa, debaixo de um par de pés. Tudo teria sido, se realmente houvesse sido, mais verdadeiro, porque teria forma, cheiro e cor. E o escritor, nós, eu, você, menos eles, teríamos conteúdo para transformar em palavras tudo o que pensávamos e sentíamos, naquele exato instante, em que se apóiam os pés sobre a mesa e olha-se para a quinta parede sobre as nossas cabeças, do quarto maldito, pintado de rosa, porque teríamos uma história, ao menos uma, e teríamos um passado, e lembranças para transformar o vazio em palavras... doces, amargas, cruéis, carinhosas, verdadeiras e mentirosas lembranças, de modo a formar um texto, feito por nós, que somos apenas alguma coisa capaz de produzir outra, e que as pessoas admiram sem saber – e jamais o saberão, e elas não sabem disso – porque o motivo esgota-se na súplica, e é o que ingenuamente eles chamam de: escritor e escrita.

Mas havia outra maneira de se começar esta história...

Olhos fechados, eu fui baixando a cabeça lentamente até que meu queixo encostasse-se ao peito.
Assim permaneci durante algum tempo que não sei precisar. Quando voltei abrir os olhos deparei-me com o asfalto molhado da rua. Chuva. Era o que mais se via em Rio Claro naqueles dias.
E mandava empalar bravos guerreiros e mulheres imaculadas.
Esta frase estava na minha mente desde o momento em que o cachorro cheirou meu pescoço e lambeu minha face. Então despertei para uma nova etapa de minha sangrenta batalha.
Eu não preciso mais de espelho. Pois eu posso encontrar a mim mesmo para onde quer que eu olhe ou onde quer que esteja.
E eu era o meu inimigo. O único que restara, pois todos os outros haviam sucumbido à lâmina de minha espada, ao meu destemor.
Mas isso fazia muito tempo. E essa brincadeira já não me proporcionava mais divertimento.
Meus inimigos de outrora talvez fossem masoquistas porque não se esqueciam de mim. Surgiam durante a noite em forma de pesadelos. Mas o pior que eles conseguiam me proporcionar era me fazer acordar com o corpo molhado de suor e a cara enfiada no chão ou na parede, estivesse eu dormindo no quarto ou na rua, como naquela noite anterior.
Fiquei ali. Parado durante algum tempo. Pensando. Por que e como tudo se acaba e renasce em forma de pensamento, sentimento, de poesia eternizada numa fotografia. Que o sol, a chuva e o vento farão apagar pouco a pouco.
O nome dela?
Adivinhei, não foi finado leitor? É o que você se pergunta nesse momento, tenho certeza.
Bom. Sejamos honestos. Ela tinha um nome, claro. Afinal, todos têm um nome. E não reclame de minha redundância. Desde o princípio eu lhe disse que não sou um bom escritor. Sou um dedicado e eficiente mentiroso. E se você retornar à primeira linha desse texto haverá de confirmar isso.
Sim. Ela tinha um nome. E era o nome mais bonito que eu já conheci.
Naquele janeiro, depois de dezenove dias seguidos a chuva dera uma trégua em Rio Claro. Eu havia acabado de deixar o centenário Gabinete de Leitura, onde dividira com a bonita e atenciosa Sueli a mesa onde os jornais eram colocados à disposição dos freqüentadores. Um artigo interessante sobre John Fante havia me convencido ficar um pouco além dos 15 minutos habituais recordando-me os momentos prazerosos que Bandini já havia me proporcionado.
Agora eu caminhava pela Rua Cinco em direção à Avenida Um na região central da cidade. Almoçaria no Tempero Manero e de lá seguiria para o Jardim Público onde se realizava a tradicional Feira do Livro Espírita.
Mas a chuva resolvera atrapalhar os meus planos e antes que eu chegasse ao restaurante tive que me abrigar sob a boa cobertura do toldo recém instalado no prédio em reforma onde antes funcionara um bar noturno.
Preciso ler Faulkner. Todo mundo que deseja escrever deveria lê-lo. Se não se aprende a escrever, lendo Faulkner – pois isso é realmente algo que não se aprende com quem quer que seja – ao menos se mata o tempo com coisa que valha a pena.
Narrativa indireta. Fluxo de consciência. Quê mais? Tem mais alguma coisa da qual não me lembro. E que eu considero importante para escrever bem.
Ficamos combinados assim leitor: Enquanto eu caminho pelas ruas centrais de Rio Claro, sob chuva e a indiferença consoladora daqueles que não me conhecem, você segue aí dentro desse ônibus, sentado confortavelmente num desses bancos horrorosos enquanto lê o meu livro. Se não esse, porque duvido que alguém o publique, qualquer outro. Tenho sete romances escritos, dezenas de contos, centenas de poemas, alguns, devidamente escondidos por motivos óbvios. Mas eu já lhe disse isso no começo dessa história, não disse?
Não. Eu duvido. Duvido que haja de cair novamente nessa lorota, não é mesmo leitor?
Sabe, vou lhe dar um nome. Boris. É assim que irei chamá-lo a partir de agora. Era o nome do cachorro do meu melhor amigo. Do meu primeiro editor.
Não. Não era. Estou mentindo. Boris é o nome do Fausto que não era lobo. Ninguém nessa maldita escória literária repleta de imbecis, energúmenos, boçais e estúpidos que se acreditam leitores de alguma coisa, ninguém, jamais, será lobo. O lobo é único. É também Fausto. Mas o seu nome não é Göethe e nem seu irmão se chama Wherter.
Compliquei caro leitor, digo, Boris? Calma, eu descomplico. Aguarde até o parágrafo seguinte.
Porque agora já é noite e enquanto me despeço de meu outro melhor amigo, o Carlinhos, eu me deparo com a sombra da lua encoberta pelas nuvens. Lua cheia. E então me lembro do nome dela. O nome mais lindo que eu já conheci.  Imagino que nesse mesmo instante, ela também pensa em mim. Tenho todos os nossos diálogos registrados na memória do meu computador. Mas nunca me ocupei de lê-los. Volta-se o olhar ao passado quando o presente está morto. E o presente ainda respira. Dentro de mim. À minha volta. E adiante. Ele resiste bravamente à certeza de que se tornará passado. No momento ele é apenas esperança. Mas esperança é como a nuvem. Traz a sombra, oferece a água e, portanto, a vida. Mas não ilumina. Não aquece. Não faz sorrir.
E o que faz sorrir? Seria fácil responder se eu tivesse 13 anos. Diria ser a comida da minha mãe, a companhia do meu pai, e a satisfação por tirar nota cinco na prova de matemática. Eu sempre fui modesto.
Havia outros motivos para sorrir. Fazer um lanche com os amigos sábado à noite. Ou pegar um cinema. Comprar um tênis novo. Ser escolhido pra formar em algum time nas partidas de futebol jogadas no clube que eu freqüentava aos domingos pela manhã. Mas, isto, se houvesse acontecido, seria motivo de orgulho e não apenas para sorrir.
Agora devo parar. Tenho fome e não tenho dinheiro. Portanto, vou escrever. Vou interromper o nosso diálogo, querido Boris, para escrever. Porque tenho fome. E o cientista disse que na natureza nada se cria e nada se perde e tudo se transforma. Não sou cientista, portanto, ainda não descobri um modo de transformar a fome em alguma outra coisa. Por isso eu escrevo.
E o telefone continua tocando. Descobriram de novo o meu número. Maldito telefone.
Para alguns povos o rito de passagem tem caráter religioso. Para o espírito é o momento em que ele aprende a distinguir o certo do errado. É o momento em que Deus o faz descer do colo e o incita a caminhar por si só.
Quem disse?
Ele. Às vezes ele fala comigo. Fala sem que eu perceba. Quando vejo, ele já se ocupou do meu pensamento.  Se eu o tivesse escutado desde o início...
Amanhã, por exemplo, eu deveria prestar vestibular para o curso de jornalismo. Pergunte Boris, se eu vou?
Sowing the Seeds of Love. Sowing the Seeds of Love. Passarei a noite ouvindo essa música martelar meus ouvidos enquanto escrevo sobre mulheres acorrentadas. Conheci algumas delas, no período em que tentei me submeter sem sucesso a alguma coisa parecida com a psicoterapia do Grito Primal. Sorte delas. Das mulheres. Não chegaram a conhecer o monstro. E eu, quando o vi diante do espelho, após finalmente me convencer a expressar os meus sentimentos básicos então reprimidos saí correndo. E deixei a mulher acorrentada e nua sobre a cama chamando por mim.
Queridinho aonde você vai? Não me deixe aqui!
Foi quando parei de beber. Mas que importância isso tem com a história que pretendo contar?
Sugiro-lhe algo interessante Boris: Volte ao início da narrativa. Você encontrará a resposta. Mas, se tiver êxito, guarde-a para si.
Como guardei a lembrança daquela mulher acorrentada e nua sobre a cama. E enquanto eu atravessava aquele imenso corredor de luz verde esbarrei num sujeito com uma garrafa de uísque na mão. Uísque da pior qualidade. Não fosse, e eu teria retirado a garrafa da mão dele sem maior dificuldade.
Sorte melhor teve meu avô que precisava apenas esticar o seu braço comprido para além do portão de algum vizinho para se servir de leites, pães e jornais. Aqueles é que eram os bons tempos. Aposto como agora, do inferno, ele está dizendo isso a me ver pensar essas coisas.
Sabe quando você está numa festa e percebe que todos já se foram e só restou você, o garçom e algumas garrafas?
É assim que o sujeito se sente. Refiro-me ao personagem sobre o qual estou escrevendo. Ainda não o batizei com um nome. Sou péssimo em nomear pessoas e lugares.  Descrever ambiente me causa tédio. Então porque escrevo?
Boris, você tem a resposta?
Duvido.
Até o momento são 1450 palavras. Bom demais. Superei a todas as minhas expectativas. E poderia parar por aqui. E pegaria o certificado do mesmo jeito. E assinado. Claro, está pago.
Mas sabe Deus porque motivo eu tenho a necessidade de ir mais adiante. Descobrir o que há por trás do silêncio.
Boris, você vem comigo?
Não lhe prometo grandes emoções, nem maiores surpresas.
Faz meia hora que estou tentando matar um maldito pernilongo. Mas se o faço posso desencadear um tsunami do outro lado do mundo. Quem disse?
My God isso é precioso!  Zé Guilherme, eu vou gastar um pouco o meu inglês. Acha que não?
Notas tiradas num piano me envolvem completamente, me fazem fechar os olhos, esquecer os minutos, e para onde caminho, e o que procuro, e a história que desde a primeira linha dessa narrativa – lembra-se dela, Boris? – eu pretendo escrever.
Estava aqui dentro do saquinho. Cinco gotas em cada pupila. Maldito computador. Estou ficando cego. Onde está? Não encontro.
Mas são 3 da manhã e o brilho da lua dissipou as nuvens. A rua está movimentada, o bar está cheio, mas a brisa da noite acalma meu espírito. Poderei dormir finalmente. Eu espero. Então, quem sabe, acordo pela manhã bem disposto e volto a escrever.
Afinal this is always on my mind desde os meus 17 anos. Faz a cabeça girar 180 graus e causa a impressão que os miolos vão estourar a qualquer momento. Mas eu sigo em frente porque comprei ainda ontem um novo par de tênis. All Star. Vermelho. Nunca tive um. Já tive do azul e do branco. Vermelho nunca. Agora tenho. E vou chutar o primeiro saco de lixo que encontrar pela frente. Calma. Não tenho mais 17 anos. Agora tenho 13. De novo. O mundo que se cuide. Sou um perigo quando tenho 13 anos.
Não me emociono mais quando ouço aquela música. Já aconteceu contigo também Boris? Porque os grandes amores, os mais verdadeiros e intensos são aqueles que não se realizam. Porque o tempo é como o vento forte que vai aos poucos lixando o coração tornando-o incapaz de sentir.
É preciso dar um sentido às coisas. É? Conte-me outra, Boris, por favor!
As idéias devem percorrer a mente, mas não permanecer; as aves ocupam o céu voando.
Onde a inteligência põe a mão causa sofrimento, porque toda a necessidade traz consigo a dor. Andei lendo Schopenhauer. Desculpem-me todos. Agora vou dormir.
Os dejetos passavam diante dos meus olhos levados pela enxurrada. Vivi todo o dia de hoje para escrever essa única frase.
Às vezes me ocorrem pensamentos que mereçam minha atenção. Isto se dá geralmente quando estou só. Na privada, debaixo do chuveiro ou pedalando. Ou seja, sem que eu tenha um pedaço de papel e um lápis por perto.
Aprenda todos os dias alguma coisa nova que realmente valha pena. O mundo seria diferente se as pessoas pensassem isso ao ligarem o computador.
E eu já estava ali algum tempo observando os livros dispostos nos displays e nos stands da Feira do Livro Espírita.
Valter havia se ausentado um pouco para ir visitar sua irmã no hospital. Voltaria minutos depois dizendo que ela seria operada na manhã seguinte.
Enquanto isso, Paulo de Tarso comentava sobre o livro que contava a história do seu mais ilustre homônimo.
Este livro mata a cobra, mostra o pau e a cobra morta. E a mulher então olhara para ele interessada no livro que, por final, acabara adquirindo a preço módico. Pois esta era uma das finalidades da Feira: divulgar a Doutrina de maneira acessível a todos. E, para isso, nada melhor que os livros.
E já é noite e não pára de chover. Valter fechara a barraca da Feira, mas antes guardara os livros, tarefa que contou com minha ajuda. É um bom rapaz. Dedicado à família e à sua religião. Trabalhamos juntos em determinada época de nossas vidas. Tenho grande estima por ele. É uma das poucas pessoas que conheci da qual vale a pena ser amigo. Valter é cozinheiro. E neste ofício servira na Marinha durante muitos anos.  Um idealista. Avis rara. Espécie em extinção.
Já é noite e continua a chover. A iluminação do Jardim Público permanece ligada a noite toda por motivo de segurança.  Não é das melhores. Alguns postes em ambos os lados do passeio central, onde, durante o dia, os camelôs ganham a vida de maneira digna diferentemente daqueles que mais os importunam: os políticos locais. Analfabetos funcionais elaborando leis, decidindo os destinos da maioria. Piada? Não, tragédia. À qual nos acostumamos.
Não somos derrotados porque perdemos. Mas porque nos conformamos.
O Jardim Público ficará vazio a noite toda. A chuva espanta os ratos e os morcegos.
Bilac, o poeta, todos os dias dá as costas para o sol, mas é o primeiro a ver o sol se por. Todos os dias. É um privilegiado.
Você presta atenção Boris, quando eu lhe digo estas coisas?
Este texto já deve ter consumido seis páginas na fonte calibre 11. Talvez ele não chegue até o papel. Talvez ele se perca na privada da minha consciência. Afinal, para que servem as Letras, se pensar é algo que todos podem. Eu bem poderia desprezar essas idéias e escrever outras.
Mas eu nada faço se não tenho vontade. O mundo seria melhor se as pessoas só fizessem o que tivessem vontade. Ninguém se sentiria culpado e todos estariam satisfeitos.
Não é assim que a coisa funciona.
E enquanto isso eu vou deixando o Jardim Público ao breu da noite e descendo a Avenida Um em direção à Avenida Visconde do Rio Claro, onde tudo acontece sem que ninguém perceba.
Passo defronte ao Coronel Marcelo Schmidt, escola onde estudei durante um ano.  Esqueço da fome e da falta de dinheiro. Nenhum tostão no bolso. Isso não é novidade. Há uma semana Dona Dalva emprestou-me dez reais que duraram exatamente uma semana.
Leon, o homem do teatro, almoça dia sim dia não. Acho que farei o mesmo. Emagreço. E, quem sabe, então, as mulheres voltam a olhar para mim. Olhos bonitos eu tenho. Mas isso não é o bastante e é tudo o que tenho.
Acho que da próxima vez virei com feição de bandido, delinqüente, fama de mau, e cheio da grana, dono de carrão e roupa descolada. Aí, quem sabe a mulherada se interessa por mim.
Não. Gosto do modo como sou. Olhar perdido, um rosto simples.
Talvez eu venha da próxima vez, um pouco mais alto. Mais magro. Mas calado do mesmo modo, distante de tudo e de todos. Porque finalmente me convenci de que aprendo muito mais observando e ouvindo do que expondo minhas idéias.
Porque a Literatura é uma assassina e sua vítima é a ignorância.
Agora vou dormir. O banco defronte ao Mercado Municipal finalmente, não sei por que milagre está vazio.
Carros passam ao meu lado. Pessoas. Mas eu ouço o deslocamento de um trem, ora perto, ora longe, um trem, cuja composição parece não ter fim. Mas o trem não pára para que eu possa alcançá-lo e tomá-lo. Durmo. Pra despertar um minuto depois.
A chuva diminui e dá uma trégua. Os sinos da Igreja de Santa Cruz me fazem contar até cinco. Durante a noite lufadas de vento chacoalham os galhos da enorme árvore derramando água acumulada da chuva sobre minha cabeça. Receio abrir os olhos quando sinto o bico de um sapato cutucar o meu traseiro. Finjo-me de morto. Mas não sou como Leon o homem do teatro. Eu sou aquele que pensa. Eu não interpreto. Não sei mentir. Ouço o policial dizer: está dormindo. E novamente sou abandonado à solidão. Durmo. E tudo se repete. Os carros, as pessoas passando ao meu lado. E o trem. Que parece não ter fim. E só agora eu percebo então porque o trem não pára para que eu possa alcançá-lo e tomá-lo. É porque, diferentemente de mim, ele tem um destino.
Duas mil setecentos e noventa e oito palavras até o momento. Ok, Boris, temos nos saído bem, você não acha?
A lâmpada ficava piscando porque, já bastante utilizada, ameaçava queimar a qualquer momento. Eu dera muita sorte encontrar aquele barracão aberto. Lá fora, havia dois ou três carros alegóricos quase destruídos pela chuva. Ali ficariam abandonados até que o serviço de cata-bagulhos da prefeitura viesse apanhá-los. Dentro do barracão havia muita sujeira. Boa parte do maquinário continuava ali desde o último dia de atividades da cervejaria. Naquele local funcionara o serviço de expedição de cargas. Agora havia muito espaço. Espaço demais. E sujeira. E abandono. E um repugnante aspecto de solidão. Muitas goteiras por causa do telhado danificado e da chuva. Pombos e a sujeira destes por toda a parte. Uma pilha de engradados de vasilhames vazios estava esquecida num canto coberta por pombos.
Desde muito pequeno eu tinha a curiosidade de conhecer aquele local. Saber como era lá dentro. Como funcionava. Mas há uma sina maldita em minha vida que sempre me leva chegar à festa quando todos já se foram e ela, a festa, terminara. Então, resta-me deparar-me com a solidão, o abandono e a sujeira do local. Ouvir em meu coração as conversas da noite e sentir em minha mente os sorrisos eternizados em lembranças por aqueles que da festa participaram. Faço deste ambiente deprimente as anotações para o meu diário de bordo.


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